Há dois modos de ver as coisas. Uma delas é olhar com apego o que os nossos sentidos nos mostram e, com isso, tecer julgamentos e opiniões. Nós podemos formar idéias sobre o que vemos e, então, dizer que conhecemos a verdade sobre aquilo que estamos observando. A outra forma de ver é o exercício do apego exclusivamente ao que é autêntico.

A diferença entre “positividades” e “negatividades” não está na polarização que estabelecemos entre elas. O positivo não é o oposto do negativo. O que acontece, afinal, é que as negatividades não possuem autenticidade, mas as positividades, sim.

Positividades são visões dotadas de autenticidade, visões objetivas. Quando observamos de forma separada da coisa observada, quando emitimos algum juízo e formamos uma idéia sobre o que vemos, a nossa visão é negativa, ela é uma “negatividade”.

Se são apenas idéias, as negatividades não possuem existência real além das fronteiras da nossa própria consciência. Se as negatividades jamais existiram, nunca houve qualquer oposição, jamais houve nenhuma polaridade, nenhuma dualidade… Apenas positividades ocultas por detrás da tela ilusória das nossas mentes julgadoras.

Todas as negatividades escondem algum tipo de positividade. Quando ignoramos a verdade sobre as coisas que vivenciamos, nós costumamos nos satisfazer com as impressões subjetivas que a mente julgadora nos impõe. Por isso nós classificamos as nossas vivências como agradáveis e desagradáveis, boas ou más… Todas essas impressões – tanto as “boas” quanto as “más” – são negatividades. Elas não são uma realidade objetiva. Se uma observação resulta no desvelamento da Verdade, o que se vê não pode ser classificado como bom ou mau.

Nenhuma positividade possui adjetivos. A Verdade é sempre um fato objetivo sobre o que não cabe nenhum tipo de julgamento. A Verdade é sempre positiva, sempre presente e objetiva.  Antes de indicar um tipo de oposição, as positividades e as negatividades são, portanto, “estados de percepção da realidade”.  Quando olhamos o mundo e emitimos julgamentos, o nosso mundo é uma negatividade. Isso significa que estamos usando os olhos da memória, os olhos da experiência passada, ao invés do olhar vigilante e silencioso da mente compassiva, o olhar do presente.

Isso não quer dizer que as negatividades devam ser desprezadas. Muito pelo contrário! Se toda negatividade esconde uma positividade, nós não podemos descansar até que o autêntico seja desvelado. É preciso “querer ver”, ao invés de alimentar mais desprezos. O “querer ver” é fundamental para o despertar da Mente Compassiva. Desistir da Verdade rejeitando as negatividades, além de ser uma das armadilhas da razão, é a origem das maiores manifestações de indiferentismo de que se tem notícia. Só o ego pode ser beneficiado com isso.

UMA ANALOGIA DA INTERFERÊNCIA

Nenhuma árvore pode surgir instantaneamente de uma semente. O “ser uma árvore” implica, além da sua aparência, também na história do seu crescimento. Se tal transformação fosse possível, algum tipo de interferência teria de acontecer. Seria preciso um mago, ou um cientista, para que o fenômeno acontecesse. Neste sentido, a mente julgadora (através do ego) é um grande mágico! É exatamente isso que ela faz o tempo todo… A mente julgadora interfere em tudo que você vê.

Sempre que estamos diante de mudanças (e tudo muda sempre), sempre que “o novo” surge, o ego já está reagindo, ajustando as mudanças aos parâmetros do sistema de crenças. O novo é sempre uma positividade, mas o ego não nos deixa ver isso. Ele nos dá sempre uma imagem relacionada – por causalidade – com o passado. Essa imagem é, destarte, sempre dual, relativa, ou seja, é sempre uma negatividade.

O ego precisa nos obrigar a estabelecer vínculos e classificações, ou ele perderá a sua função e desaparecerá… Sem julgamentos o ego simplesmente desaparece. Foi por isso que Jesus ensinou: “não julguem para que não sejam julgados”. Quando julgamos, o ego se fortalece, ele ganha importância e estabelece as bases e as medidas do nosso próprio futuro!

O JUÍZO FINAL

Todas as descrições do Juízo Final são referências alegóricas ao fim do ego, o fim de todos os julgamentos, ou seja, o momento em que o indivíduo escolhe ver apenas positividades, mesmo que elas estejam ocultas nas negatividades. Trata-se do último julgamento, o máximo da lucidez, quando podemos discernir com clareza apenas a diferença entre o autêntico e o ilusório.

O ego está sempre interferindo e, à medida que as suas interferências vão acontecendo, nós vamos acumulando negatividades. Nós não podemos evitar as interferências, mas podemos nos tornar conscientes das estratégias do ego. Conscientes das interferências, as positividades vão se mostrando por si mesmas, elas surgem naturalmente. Mas, para que isso aconteça, é preciso ver além do ego, e o único modo de fazer isso é abrindo mão de todo e qualquer julgamento.

O CICLO DE NEGATIVIDADES

Quando o ego interfere, ele se vale de alguns mecanismos para nos sujeitar às negatividades. Ele nos submete aos seus delírios através, principalmente, do prazer e do medo. Sem prazer não aceitaríamos as negatividades; sem medo, nós não nos apegaríamos ao prazer… Nós somos assim, nós nos lembramos muito mais facilmente dos nossos pesadelos do que dos nossos sonhos mais belos. Nós sabemos enumerar todas as vezes que sofremos, mas poucas das nossas alegrias nos acompanham.

O medo dá o sinal de partida para circuito fechado de apego, um “ciclo de negatividades”. Medo provoca ansiedade, o impulso irresistível de interferir para escapar do que tememos. Como a fonte do medo está oculta no ego, nós acabamos sempre decepcionados, insatisfeitos, e isso nos provoca raiva. Movidos pela raiva, nós criamos confusões, lutas, conflitos… E isso tudo provoca ainda mais medo. É um ciclo vicioso…

Ciclo de Negatividades

Ciclo de Negatividades

Tudo de que o ego precisa é que nós desejemos interferir. Basta que tentemos “fazer algo” sobre qualquer um desses sentimentos. Quando interferimos no medo, ele se torna hostilidade para produzir a ansiedade. Quando interferimos na ansiedade, ela se transforma em desânimo a fim de provocar decepções. Quando interferimos nas nossas decepções, surge a intolerância para que a raiva apareça. Finalmente, quando interferimos na raiva, ela se manifesta como irritação, e faz emergir o medo novamente…

Nós só precisamos querer interferir, quem age por nós é o próprio ego. Os hindus chamam o ego de “Ahankara”, que significa literalmente: “o que faz”. Para eles, “o que faz” é a raiz de todas as dualidades, a origem da aparente separação entre o homem e a divindade. Segundo suas crenças, “o ahankara coloca os seres humanos sob o domínio de maya; o que é subjetivo apresenta-se falsamente como objetivo…” (Yogananda).

O ego é quem faz, por isso o único modo de vencer o ciclo vicioso das negatividades é abandonar o ego. Nós não podemos nos livrar do medo, mas podemos nos livrar “daquele que faz”, podemos nos livrar de nós mesmos.

O CICLO DE POSITIVIDADES

Sem renúncia não há nem liberdade, nem uma vontade legítima. Quando renunciamos de fazer algo sobre o medo e nos permitimos apenas observar, o natural é que o Amor se mostre por si mesmo sob a forma de “gentileza”. Se renunciamos a lutar contra a ansiedade, uma forte “confiança” brota naturalmente em nós. Quando nos negamos a agir contra a decepção, emerge em nós a “tolerância”. Escolhendo somente observar, finalmente, a raiva, a compaixão floresce em nossos corações, abrindo, assim, as portas para a Mente Compassiva…

Para sair do ciclo vicioso do medo e entrar na roda libertadora da compaixão, basta renunciar ao “querer fazer” e escolher, simplesmente, o “querer ver”. Todos os monstros desaparecem quando acendemos a luz…

Ciclo de Positividades

Ciclo de Positividades

AÇÕES POSITIVAS

Do mesmo que as visões, as ações também podem ser positivas ou negativas.  As “ações positivas” são legítimas, neutras, não podem ser classificadas como “certas” ou “erradas”. Todas as ações positivas derivam de quatro ações básicas:

1.Estar presente…
2.Compartilhar somente positividades…
3.Querer ver…
4.Renunciar às reações (todas elas egóicas)…

Cada uma destas ações está ligada, respectivamente, ao amadurecimento de quatro atributos fundamentais:

1.Estabilidade (Presença)…
2.Cooperatividade (Renúncia)…
3.Humildade…
4.Fé…

Não existe nenhum método infalível para o desenvolvimento desses atributos, mas, cada vez que somos capazes de perceber que estamos em algum ponto do ciclo de negatividades, cada vez que sentimos medo, ansiedade, decepções ou raiva, temos uma oportunidade para renunciar a fazer. Nós podemos nos negar a agir negativamente e, assim, permitir o despertar da Mente Compassiva.

Quando aprendemos a observar o medo, a cooperatividade (ou renúncia) tem uma oportunidade de surgir.
Quando aprendemos a observar a ansiedade, a humildade pode se apresentar.
Observando as decepções, aprendemos sobre a fé.
Aprendendo a observar a raiva sem fazer nada, a estabilidade (ou presença) é alcançada.

Imitar esses atributos não é o mesmo que conquistá-los. Ninguém deveria fazer nada enquanto não pudesse observar a raiva e vê-la desaparecer naturalmente. Se alguém sente raiva e perdoa, seu perdão é falso, é uma ação negativa. Isso é o mesmo que transformar uma semente instantaneamente numa árvore… Além de acelerar o surgimento da irritação, agir de qualquer modo é desperdiçar uma oportunidade para libertar-se do ciclo vicioso das negatividades. Se alguém decidir apenas observar a raiva, descobrirá que não será obrigado a perdoar, pois saberá positivamente que nenhuma ofensa foi praticada.

COMPARTILHANDO POSITIVIDADES

Visões e ações positivas devem ser compartilhadas. Isso significa que, se há uma relação entre nós e o mundo, ela deve ser sempre autêntica, sempre positiva.

  • (Fé) Compartilhar as positividades transforma o medo em gentileza…
  • (Humildade) Querer ver transforma ansiedade em confiança…
  • (Renúncia ou Cooperatividade) Renunciar às ações negativas transforma as decepções em tolerância…
  • (Estabilidade ou Presença) Estar presente transforma a raiva em compaixão!

A CAPACIDADE DE ESTAR PRESENTE

Estabilidade é a capacidade de estar presente. Muitas pessoas teorizam que o estado de presença implica numa passividade inútil aos desafios da vida. Essas pessoas jamais estiveram presentes, elas não suportam a sua própria presença… São prisioneiras das suas crenças.

Estabilidade é o mesmo que a “inércia ativa”, ensinada por Akbel, é o mesmo que “serenidade”. Sem a presença, não há nenhuma positividade a ser compartilhada, portanto, não pode haver cooperatividade – só se pode cooperar estando presente e tendo algo objetivo para oferecer. Ainda assim, é preciso ter humildade, ou seja, é necessária uma total predisposição a ver, e nós só podemos ver as positividades quando reconhecemos que nada sabemos sobre elas. “Tudo o que sei é que nada sei”, diria Sócrates… Só quem não sabe pode aprender! Além disso, é preciso renunciar a tudo que não é autêntico. A Fé (palavra que vem do latim, “fide”, e significa “fiel”, “autêntico”), nas tradições ocidentais, é o mesmo que “Satya” na tradição hindu. Somente a Fé, o apego exclusivo ao autêntico, pode remover as montanhas da ignorância que nos separam de toda positividade.

Por mais estranho que pareça, cada vez que sentimos medo, ansiedade, decepção ou raiva, estamos tendo uma oportunidade para despertar. É só escolher dar o salto, “querer ver” ao invés de “querer fazer”. Nós, todavia, geralmente escolhemos o “querer fazer”, e nem percebemos a nossa escolha…

ESCONDERIJOS DE NEGATIVIDADES

Os vícios são, em geral, esconderijos para as nossas negatividades. O hábito de consumir bebidas alcoólicas, por exemplo, mesmo que não constitua uma doença, oferece sempre um refúgio para o medo. É um hábito resultante das nossas reações ao medo… É um “fazer algo”. Se, por um lado, quando bebemos nos tornamos mais sociáveis, mais soltos, alegres e relaxados, quando o efeito do álcool se vai, a hostilidade emerge e nós nem sabemos de onde ela vem. A hostilidade já se acumulou em nossos comportamentos e está pronta para eclodir sem avisos prévios. A origem foi o medo, mas nós não notamos isso. Nós ficamos mais resistentes à gentileza e à cooperatividade. Pessoas dependentes de álcool são mais suscetíveis aos efeitos do medo do que as outras. Cada um de nós tem uma suscetibilidade particular a cada uma das quatro negatividades básicas. É por isso que os nossos hábitos e vícios podem nos ajudar a revelar o que estamos escondendo:

MEDO –> ÁLCOOL
ANSIEDADE –> FUMO
DECEPÇÃO –> JOGO
RAIVA –> GULA

Sendo assim, a questão não é combater ou não esses hábitos (mesmo que eles se configurem explicitamente como vícios), pois eles não são a causa de nada, mas simplesmente reconhecer que eles estão escondendo algo de nós.

Do mesmo modo que o álcool esconde nossas reações ao medo (que são, em resumo, hostilidade), o fumo pode esconder as nossas reações contra a ansiedade, fazendo com que não sejamos capazes de perceber a desconfiança, a depressão e o desânimo. O jogo esconde de nós as nossas reações contra as decepções e faz com que nos tornemos, sem perceber, cada vez mais intolerantes, cada vez mais restritos em nossos horizontes de expectativas. Já a gula, especialmente o hábito de comer carne, esconderá as nossas reações contra a raiva e, com isso, nós vamos nos tornando mais irritados, mais sensíveis e prontos a reagir contra todos os estímulos exteriores.

Em verdade, nenhum desses hábitos é “mau” por si só. Eles são apenas esconderijos fornecidos por nós mesmos para as nossas negatividades. Existem pessoas que não bebem, não fumam, não jogam e não comem carne mas, ainda assim, reagem negativamente a tudo. Do mesmo modo, existem verdadeiros “santos” que se ligam a um ou mais vícios… É por isso que os vícios não servem de medida para a grandeza espiritual de ninguém!

Ao mesmo tempo em que escondem as armadilhas do ego, esses hábitos também podem nos dar indicações precisas quanto às nossas suscetibilidades, permitindo-nos, então, adotar a ação positiva mais adequada. Se, por exemplo, alguém é viciado em tabaco, o aprendizado e o exercício da humildade pode levá-lo facilmente à libertação, não apenas do seu vício, mas de todo o ciclo de negatividades. O mesmo vale para todos os grupos de hábitos:

Jogo –> Fé… Apegar-se apenas ao que é autêntico…

Gula –> Estabilidade… Estar presente… Serenidade…

Álcool –> Cooperatividade… Compartilhar somente positividades…

Fumo –> Humildade… A simplicidade do “querer ver”…

“Combater” os vícios só pode provocar uma reação de fortalecimento do ego. O mais importante é, primeiro, reconhecer que nada podemos fazer contra as nossas dependências (pois elas não são realmente nossas) e depois procurar incansavelmente as negatividades que elas escondem.

Ao invés de lutar, devemos escolher “querer ver”, renunciar a qualquer ação, ser apenas quem observa sem interferir. Este é o único comportamento capaz de tornar clara a separação entre o que somos e quem realmente sofre, aumentar o contraste entre a individualidade e o ego… as positividades e as negatividades.